Era uma noite fresca na China antiga. Um
amigo de Chuang Tzu foi procurá-lo numa estalagem local. Chegando lá,
encontrou-o sentado numa mesa, bebericando seu chá com um semblante
contemplativo.
– Aí está você ! – disse o amigo de
Chuang Tzu. – Achei que estivesse contando a todos mais uma de suas
histórias. Por quê está tão calado?
– Há uma questão em minha mente – disse Chuang Tzu. – Uma questão sobre a existência.
– Entendo. Você quer que eu lhe deixe sozinho com seus pensamentos?
– Não, gostaria de compartilhá-la com você. Talvez você possa me ajudar com sua perspectiva.
– Minha perspectiva é de pouco valor, mas ficarei contente em ouvir – ele puxou uma cadeira.
– Saí para uma caminha no final da tarde
–, começou Chuang Tzu. – Fui até um de meus lugares preferidos embaixo
de uma grande e frondosa árvore. Ali sentei e comecei a pensar no
significado da vida. Estava tão fresco e agradável que logo relaxei e
peguei no sono. Comecei então a sonhar que estava sobrevoando um belo
campo florido. Olhei para trás e vi que tinha asas. Elas eram grandes e
bonitas e se agitavam rapidamente. Eu havia me transformado numa
borboleta! Senti uma enorme sensação de liberdade e alegria ao voar
suavemente em qualquer direção que quisesse. Tudo nesse sonho parecia
completamente real em todos os sentidos, tanto que, depois de um tempo,
eu me esqueci por completo que um dia fora Chuang Tzu. Eu era
simplesmente uma borboleta e nada mais.
– Eu tive sonhos em que voava, mas nunca
como uma borboleta – o amigo respondeu. – Esse sonho me parece uma
experiência maravilhosa.
– E foi, mas como todas as coisas, cedo
ou tarde teve que acabar. Lentamente, acordei e percebi que eu era
novamente Chuang Tzu. Isso é que me intriga.
– O que há de tão intrigante? Você teve um belo sonho, só isso.
– E se eu estiver sonhando agora? Essa
conversa que estou tendo com você parece real em todos os sentidos,
assim como meu sonho. Eu achei que era Chuang Tzu que tivesse sonhado
ser uma borboleta. Mas, e se sou uma borboleta que, agora mesmo, está
sonhando ser Chuang Tzu?
– Bem, eu posso lhe afirmar que você é realmente Chuang Tzu e não uma borboleta.
Chuang Tzu sorriu: – Você pode ser
simplesmente parte do meu sonho, nem mais nem menos real do que qualquer
outra coisa. Assim, não há nada que você possa fazer para me ajudar a
identificar a distinção entre Chuang Tzu e a borboleta. Essa, meu amigo,
é a questão essencial sobre a transformação da existência.
Primeira Lição: Unidade
Ao conectar-se com a borboleta, Chuang
Tzu está dizendo que todas as coisas vivas estão unidas pela força de
vida contida dentro delas. O esforço para sobreviver e prosperar em nós é
o mesmo que existe em tudo, desde a maior das criaturas até o menor dos
insetos. Quando reconhecemos isso, podemos começar a enxergar a nós
mesmos como parte da natureza, ao invés de separados dela.
Chuang Tzu escolheu a borboleta
deliberadamente para enfatizar este ponto. Em termos de aparência, uma
borboleta parece tão diferente de um ser humano quanto qualquer outra
coisa pode ser. Todavia, em um nível fundamental, ela é exatamente como
nós – uma manifestação da vida, e, assim sendo, do Tao no mundo
material.
Se nós podemos dizer isso de uma
borboleta, então podemos dizer sobre tudo. Portanto, uma das verdades
mais básicas do mundo é que tudo é um.
Segunda lição: A vida é como um sonho
Chuang Tzu também aponta nessa história
que um sonho pode parecer tão real quanto nossa vida desperta. Todas as
visões, sons, sentimentos e emoções num sonho são tão vividos e intensos
quanto nossa experiência em vigília.
Essa lição é um exercício de
desprendimento em duas áreas de vida: obsessões emocionais e obsessões
materiais. A chave dessa lição é o percebimento de que se podemos ver
como os sonhos podem parecer completamente reais, a realidade também
pode ser vista como um sonho.
Nós podemos ficar emocionalmente
obsessivos ao interagir com outros. Quando alguém diz algo positivo
sobre nós, nos agarramos a seus elogios e aprovações; porém, quando
alguma coisa negativa é dita, nos apegamos a sentimentos destrutivos de
ser ofendido ou atacado.
Peguemos o lado negativo como exemplo.
Suponhamos que alguém tenha lhe dito algo extremamente insultante e você
ficou zangado. É seu desejo recuperar a tranqüilidade, mas sua raiva
torna isso impossível. O que fazer?
Primeiro passo: lembre-se do alerta de
Chuang Tzu sobre a equivalência entre o estado de sonho e a realidade.
Se você experienciar o insulto num sonho, você também se sentirá
magoado, ofendido e raivoso.
Segundo passo: perceba que você já tem a
habilidade natural de lidar com tal situação. Se o evento ocorre num
sonho, você simplesmente o coloca de lado ao acordar. É apenas um sonho,
tudo está bem afinal. Todos nós já fizemos isso antes. Somos todos
“experts” em lidar com sonhos ruins.
Terceiro passo: Aplique essa habilidade
natural para lidar com suas emoções negativas. Embora o evento tenha
realmente acontecido, sua reação emocional a ele é exatamente idêntica.
Essa equivalência básica lhe dá a chave para lidar com sua raiva. Encare
a negatividade como se fosse um pesadelo, e reflita sobre como, em
alguns sentidos, isso é literalmente verdadeiro. Logo você descobrirá
que deixar a raiva ir não é algo tão difícil quanto pensava.
Terceira Lição: Despertar a Consciência
Tornar-se totalmente desperto é uma
poderosa metáfora no cultivo espiritual. A palavra “Buda” significa,
literalmente, alguém que se tornou completamente desperto. Comparado a
esse estado, nosso ordinário estado de consciência se assemelha ao sono,
e tudo que consideramos real na vida parece não ter mais realidade do
que um sonho que se desvanece em nada.
Isso pode ser difícil de entender.
Afinal de contas, nesse exato momento você provavelmente se sinta
bastante desperto. Por quê então alguém diz que você está dormindo
quando você sabe que não está?
A verdade é que a grande maioria das
pessoas opera num baixo nível de consciência na maior parte do tempo.
Considere a última vez que você trancou a porta, foi embora e depois
teve de voltar para verificar se a tinha realmente trancado. Ou pense em
quando você entrou num quarto e não conseguiu se lembrar do motivo de
ter entrado ali. Você estava procurando por algo? Se sim, o que era? A
única chance de se lembrar foi refazer seus passos para se reconectar a
seu intento original.
Se você já passou por alguma das
experiências citadas acima, então você já compreende o que Chuang Tzu
quer dizer. Ao passarmos pelos movimentos diários da existência, nós
parecemos estar sonambulando a maior parte do tempo. De vez em quando
temos um momento de claridade, como uma pessoa que dorme, e acorda
apenas o suficiente para verificar o despertador, voltando logo depois
ao seu sono.
Como podemos estar plenamente despertos?
Isso é algo que requer um esforço persistente. Os cultivadores do Tao
que focam esse aspecto da vida, praticam consistentemente o “estar
presente”. Através de diligente repetição, eles desenvolvem o hábito de
sempre se perguntarem “O que estou fazendo agora?” e “O que está
acontecendo ao meu redor agora mesmo?”. Pessoas que assim procedem,
invariavelmente, fazem descobertas surpreendentes. Eles pegam a si
mesmos fazendo coisas sem o menor sentido, ou de repente ficam cônscios
de algo significativo e óbvio que, de alguma forma, não haviam se dado
conta antes. E quanto mais praticam estar “no momento”, mais
naturalmente e com mais freqüência isso ocorre.
Quarta lição: Transformação
A última lição de Chuang Tzu é também a
mais importante. A borboleta é crucial na estória, pois representa a
liberdade – um libertador estado de espiritualidade onde transcende-se o
medo, assim como uma borboleta voando livre das limitações impostas
pela gravidade. Um cultivador do Tao que atinge essa liberdade se torna
um indivíduo ilimitado, não atado por apegos emocionais e materiais que
restringe a maioria das pessoas.
A transformação a que Chuang Tzu se
refere nessa história, em conjunção com a borboleta, formam uma imagem
poderosa que representa o processo completo do cultivo do Tao. Nós
começamos fazendo lento progresso, aprendendo uma lição após outra,
assim como a lagarta rastejando lentamente, comendo e fazendo seu
caminho através das folhas.
Após suficiente acúmulo de conhecimento
durante um longo período, a mente começa a processar a informação,
extraindo sabedoria da alma. Essa é uma época de meditação, reflexão e
quietude, bastante parecida ao completo crescimento da lagarta evoluindo
ao estágio da crisálida.
Assim começa a metamorfose mágica.
Pequeninas asas, quase imperceptíveis, se expandem rapidamente
tornando-se cada vez maiores. Uma transformação espetacular acontece, e
uma bela criatura emerge da crisálida. A criança tornou-se adulta.
Do mesmo modo, alguém que passa pela
metamorfose do Tao se transforma em uma nova pessoa. O cultivador do Tao
se transformou num sábio. As asas da espiritualidade se expandiram e
ficaram muito maiores, mais coloridas e belas.
Agora podemos ver ainda mais claramente
que Chuang Tzu escolheu a borboleta com cautelosa deliberação. Está
também bastante óbvio o motivo de a borboleta representar Chuang Tzu na
cultura chinesa. Cada peça do quebra-cabeça se encaixa tão perfeitamente
que não poderia ser colocada de outra forma.
Chuang Tzu quer nos dizer com essa história que todos temos o potencial de nos transformar em borboleta?
Sim, mas não sem primeiro passar pelo
estágio da larva e da pupa. Saltar diretamente para o estágio da
borboleta pode apenas ser um sonho que logo acaba. Se você encontrar
pessoas que afirmam serem iluminadas, tenha cuidado, pois muito
provavelmente são apenas lagartas, não muito diferentes de você ou eu.
Elas até podem estar convencidas de que são borboletas, mas isso ocorre
porque estão sonhando.
O que Chuang Tzu nos deu foi um
vislumbre do que podemos alcançar através do cultivo do Tao. Se tivermos
paciência, diligência e fé enquanto procuramos e consumimos folhas
nutritivas, virá o dia em que entraremos no estágio da crisálida e
finalmente emergiremos dali. Daí então, descobriremos que a alegre
liberdade da borboleta não é mais apenas um sonho!
Por Derek Lin
Tradução do inglês por Anderson Taira
muito bom o post, estava lendo o mangá de deadman wonderland que cita essa história e fiquei com curiosidade sobre o assunto, quem imaginaria que uma simples citação teria tamanho conteúdo, continue com o ótimo conteúdo e parabéns pelo excelente trabalho!
ResponderExcluirValeu, Igor. Visite sempre nossos blogs.
ExcluirAbraços
[]http://imageshack.us/a/839/9780/53191663****[/]Vim parar neste site pelo mesmo motivo, lembrei vagamente de uma referência em uma musica de Raul Seixas, mas não sabia os detalhes. Deadmean é um anime carregado de referências complexas e temas metafísicos, mais do que pensamos em uma rápido olhar.
ResponderExcluirGostei, muito bom! Obrigada!!!
ResponderExcluirÉ tão compensador quando se esta em um estagio de lagarta e nos deparamos com um texto destes,sinto que meu rastejar de hoje será em pró de uma intensa liberdade no amanhã.
ResponderExcluirParabéns pelo trabalho. A matéria é de excelente conteúdo e com toda certeza vou refletir mais no "agora", eu sempre tive a sensação de estar sonhando o tempo inteiro e agora sei que é por estar dormindo, obrigado foi de grande ajuda!
ResponderExcluirEstava assisitndo Dark e ouvi sobre o paradoxo...Que espetáculo!
ResponderExcluirTudo que você disse tem sentido, gostei bastante do tema, quero aprofundar mais conhecimentos como lagarta que sou rs! Gratidão pelo texto.
ResponderExcluirRaul Seixas musicou o paradoxo em O conto do sábio chinês. Uma linda canção.
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